sábado, 30 de abril de 2011

O vale perdido dos Incas

"Quem vem a Arequipa e não conhece o Canion do Colca, não conhece Arequipa", disse Fred, o guia de rua que nos mostrou um pouco da cidade. Belíssima região, grande legado cultural inca e pré-inca que, com a chegada dos europeus (ou a invasão, para ser mais correto), resultou numa interessante mistura de sabores, costumes, cores, etc, etc. Bem, vamos al Valle del Colca então.

Milhões de agências e o mesmo pacote, sempre. Pueblo tal, mirante tal, artesania, vicunhas, alpacas, show folclórico, bla, bla, bla. Gostávamos mais da idéia de uma caminhada de três dias pelas trilhas antigas, um grupo pequeno ou apenas nós e o guia. Uma agência bem indicada em alguns sites, "Pablo's tour" oferecia uma rota alternativa, inclusive no preço...bem mais caro. Achamos que não valia a pena. Voltando ao hotel contratamos o passeio que eles ofereciam, que era como os outros mas...

Oito da manhã rumamos a Chivay, cidade base para os tours pelo vale. A partir daí começamos a perceber que o poderia ser mais que o esperado. Lis, a guia, divaga sobre a paisagem da janela do ônibus. Fala da periferia de Arequipa (eles também tem sua Cidade de Deus), de onde vem toda aquela gente pobre em busca de oportunidades, as ações do governo, as dificuldades, e enquanto fala um cenário empoeirado pleno de casas simples de tijolo à vista preenche o quadro a nossa volta.

Aos poucos, a cidade desaparece dando lugar a uma planície árida, de vegetação rasteira, muitas pedras e uma ou outra casinha fincada ao longe, ao pé das colinas. Lis segue descrevendo o solo, a vegetação, nomeando os picos nevados dos vulcões (são mais de cem na região), fala do povo daqueles "desertos", o que cultivam, como vivem, quem são. A medida que avançamos para cima, a guia distribui caramelos e folhas de coca, bem-vindos para mim que começo a me sentir um pouco estranho pelo soroche.




No percurso, uma vista dos vulcões, a reserva natural das vicunhas, numa lanchonete/loja onde se toma chá de coca (já estamos a 4.700m), "servicios higienicos" e, claro, muita artesania.





Começamos a descer e, pouco a pouco, o cenário fica ainda mais deslumbrante. Desfiladeiros gigantescos, muitas montanhas e curvas na estrada. Depois de algumas horas se avista ao longe, no meio de um vale, Chivay, a cidade do amor no idioma Quechua. Ali e em todo o vale ainda se vê as mulheres com vestimentas típicas, uma mistura da tradição inca com a influência espanhola. Almoço barato num buffet onde se come à vontade, chegada ao hotel simples com marcas de um passado talvez mais glorioso e, à tarde, estação de águas termais.



No dia seguinte, começa realmente a excursão pelo vale, às 5h30. A visita percorre uma parte dos mais de 100km do cânion del colca e vamos parando em mirantes e nos vários pueblos distribuídos na margem esquerda do desfiladeiro que tem mais de 1000m de profundidade. No fim do percurso, a atração principal em cruz del condor: o vôo dos condores. A essa hora da manhã, umas 8h30, eles saem dos seus ninhos nas encostas do desfiladeiros para aproveitar as térmicas e subir às alturas, o que resulta no melhor momento do passeio. Eles voam baixo e passam bem perto das pessoas como que se exibindo a nós, como que a mostrar o quanto são soberanos em seu reino magnífico.






domingo, 24 de abril de 2011

En la ciudad blanca


Ao pé desses vulcões gigantes é fácil entender porque os incas os consideravam deuses. É fácil saber porque diziam que a montanha era viva. Seu picos nevados tocam o céu e mesmo sua aparente imobilidade deixa clara a grandiloquência dos seus perfis no horizonte. "Se el Misti entra en erupción, se acaba Arequipa", diz o guia que nos aborda dentro do convento dos jesuitas, hoje convertido em centro comercial/turístico. Fred nos decifra alguns dos signos ocultos daquela construção antiga e como os jesuítas deixaram signos da religiosidade local misturados aos "oficiais" trazidos pelos espanhóis. No pátio de uma Igreja, um cristo na cruz está ladeado pelo sol e pela lua. Para nosotros, naquele momento, o símbolo mais sintético desse cristianismo mestiço, repleto de sabedorias antigas que cederam à ignorância do invasor e fingiram capitular, porque se sabiam eternas.



Pouco antes, no museu dos santuários andinos, uma série de objetos ritualísticos encontrados junto à múmia da menina Juanita, trazem, cada um, uma mensagem do passado que nos toca o coração. Uma vibração antiga que nos faz voltar no tempo para entender e compartilhar um pouca da visão inca do universo, de deus, da natureza, do homem... E no fim, a múmia de outra "criança deus", Sarita, oferecida à montanha nos encara de dentro de sua câmara fria, por trás de três camadas de vidro blindado, e mesmo assim, podemos sentir como foi intenso o seu propósito e quão profundo o significado do seu sacrifício final. Por meio de Juanita, Sarita e outras crianças deuses oferecidas à montanha, até agora o gelo derretido revelou 11, o povo Inca renasce, em todo esplendor de sua eternidade.



Além disso, a "ciudad blanca" do Peru é um centro gastronômico de tentações variadas. Aqui o pecado da gula é um dos mais atrativos e é muito difícil não cair em seu alçapão. Como nos diz Walter, o "mestre em culinária pré-inca", a cidade era uma encruzilhada onde se cruzavam, além de caminhos, costumes, culturas e receitas, claro. Em seu restaurante, o Soncollay (meu pequeno coração, em Quechua), celebramos o nosso "carnivorismo" de uma forma selvagem e farta, comendo costelas e lombo de alpaca assados sobre rochas de vulcão superaquecidas pelas brasas de uma tradição muito antiga. Valter, com sua aparência rude e descuidada, não lembra em nada um chef, ou um mestre de tradições antigas, mas é isso o que é, e os bons momentos gastronômicos que vivemos no seu Soncollay, regados a uma quase gelada Arequipeña, não nos deixam mentir. Hoje, só ceviche, para desopilar o fígado, como diria meu amigo Jura.